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Imagine um serviço de saúde e assistência onde as pessoas podem usar substâncias consideradas ilícitas – como o crack e a heroína- sem serem julgadas ou punidas. Um serviço onde estas pessoas são acolhidas e recebem cuidados necessários, ao invés de estarem nas ruas, parques e cracolândias. Nos últimos 20 anos tais serviços tem sido parte integrante das estratégias de redução de danos em uma série de países da Europa ocidental, América do Norte e Austrália. Este blog traz um resumo sobre estas salas de uso - o que são, quais seus benefícios, onde elas são possíveis, e quais os principais modelos de sala existentes.
Definição e nomes
“Salas de uso são instalações onde pessoas (em situação de rua) que são dependentes de drogas podem usar suas substâncias em um ambiente mais calmo, seguro, higiênico, e sem julgamento ou punição. Salas de uso visam reduzir os danos à saúde e à sociedade relacionados ao uso de drogas”
Estas salas oferecem um lugar onde as pessoas trazem suas drogas ilícitas pra usar; as drogas não são fornecidas.
As salas podem ser conhecidas por diversos nomes, como:
- Salas de consumo/uso de substâncias
- Salas de consumo/uso assistido
- Salas de uso seguro
- Salas de uso (injetável) supervisionado
Benefícios
As salas de uso salvam vidas e promovem acesso a saúde para as pessoas que usam drogas. Elas também trazem benefícios para a sociedade em geral na medida em que auxiliam na prevenção de doenças transmissíveis e na diminuição da criminalidade associada ao uso em espaços públicos.
Vários estudos comprovam os benefícios das salas de consumo. Em 2018 fizemos uma revisão da literatura sobre os benefícios das salas de uso, especificamente para pessoas que usam drogas estimulantes como o crack. O que encontramos foi que as salas ajudam a:
- Prevenir a overdose
- Prevenir doenças transmissíveis
- Prevenir o estigma e a violência associados ao uso de drogas em espaços públicos
- Prevenir sentimentos de insegurança associados ao uso em espaços públicos
- Promover o acesso à serviços de saúde e assistência
- Promover o acesso à materiais esterilizados e mais seguros
- Prevenir a solidão e isolamento das pessoas que usam drogas
Usuário da sala 1A sala de consumo pra mim é como um café, um lugar para encontrar as pessoas e conversar.
Usuário da sala 2A maneira principal em que a sala de consumo contribuiu para a minha qualidade de vida é através da alimentação. Há quase sempre alimentos saudáveis e em abundância aqui. […] Socialmente o lugar também é de grande valor. Eles são pessoas de confiança para trocar ideias, mas podem também ser um espelho para mim. Podem verificar minha saúde e dizer-me quando eu não pareço estar muito bem. Nem sempre eu consigo fazer isso sozinho.
Salas de uso no mundo
Modelos de salas de uso de substâncias
-
Salas integradas
Salas integradas
As salas integradas possuem uma série de outros serviços associados ao espaço para consumir drogas. Estes serviços podem ser:
- espaços de convivência
- consultas médicas e de cuidados em saúde
- atendimento em saúde mental
- atendimento em assistência social
- terapia de substituição (como a metadona ou buprenorfina para usuários de heroína)
- atividades de geração de renda
- apoio administrativo e legal
- chuveiro e roupas limpas
- alimentação
- possibilidade de usar um telefone ou computador (para falar com a família, arranjar questões de serviço social ou legais, procurar emprego ou fazer um currículo, por exemplo)
- atividades recreativas
- referência a outros serviços
Além destes serviços, os usuários recebem materiais para o uso mais seguro e informações sobre redução de danos. O vídeo abaixo é um exemplo destes tipos de sala. A primeira e única sala na América Latina no momento (2020), localizada no México. A sala ainda enfrenta dificuldades para ter apoio governamental, em função do preconceito com o uso de drogas. O mesmo tipo de sala existe e conta com suporte governamental e de instituições internacionais em vários outros países da Europa e América do Norte.
2. Salas especializadas
3. Salas móveis
4. Salas residenciais
Estilos e regras
As salas de uso podem ter diversos estilos, dos mais formais aos mais informais.
As salas formais possuem regras mais rígidas, mais protocolos de higiene e segurança, maior separação entre os usuários, e geralmente incluem trabalhadores em saúde como enfermeiros para supervisionar o consumo de drogas. Nestas salas, por exemplo, pode-se ter controle através de câmeras e espelhos (como vemos na foto abaixo), detector de metais na porta de entrada, e checagem para verificar se o usuário está trazendo suas próprias drogas. Esta sala da foto fica no Canadá.
Como as salas de consumo de drogas funcionam?
Em geral, as pessoas que usam drogas trazem suas substâncias e tem um tempo determinado para fazer o uso. Este tempo, em torno de 30 minutos, pode ser estendido caso não haja ninguém esperando para fazer o uso.
Usuários do serviço são geralmente cadastrados. Pode haver diferentes critérios de admissão, por exemplo, relacionados a idade, histórico de dependência de substâncias, ou estar em situação de rua. Comumente, o cadastro é feito no primeiro acesso, onde os usuários também precisam assinar um contrato concordando com regras da casa.
As regras variam muito conforme o modelo e estilo da sala, e conforme as necessidades e preferências dos usuários do serviço. Uma boa prática de várias salas de uso é definir as regras juntamente com os usuários. Regras bastante comuns são não ser agressivo (verbal ou fisicamente), trazer suas próprias drogas, não vender drogas dentro da sala, e respeitar os demais usuários.
Com relação aos trabalhadores, estes podem ser enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, pares, educadores sociais, e redutores de danos em geral. O importante é que os trabalhadores sejam acolhedores, criem uma atmosfera saudável, e contribuam para melhorar a qualidade de vida da população usuária do serviço. Para isso, é necessário buscar um equilíbrio entre condições necessárias de segurança e higiene (tanto para usuários quanto para trabalhadores) e as necessidades e preferências dos usuários do serviço.
Salas de uso de substâncias no Brasil
Infelizmente ainda não existem salas de uso no Brasil. Tais salas, nos diversos modelos descritos aqui, seriam extremamente benéficas para acolher as pessoas que usam drogas e estão em situação de vulnerabilidade. Salas de consumo possibilitariam à essas pessoas a não precisarem fazer uso na rua, expostas à violência policial, preconceito da comunidade, e condições não higiênicas. Também ofereceria um espaço protegido, onde o acesso a outros serviços em saúde e assistência é facilitado. Tais serviços já existem em vários outros países, e sua eficácia é comprovada. É uma questão de vontade política, e pressão da sociedade civil organizada.
Qual a sala de consumo que você gostaria de ver na sua cidade? Aqui alguns pontos para pensar e discutir:
- Quais seriam os objetivos do serviço – para que e para quem ele existiria?
- Qual modelo funcionaria melhor? Integrada, especializada, móvel, residencial, ou ainda um novo a ser criado?
- E qual estilo – formal ou informal? Que tipos de regras seriam necessárias?
Quer compartilhar suas ideias? Escreva aí!
Para saber mais
- de Gee, A.; van der Gouwe, D.; Woods, S.; Charvet, C.; van der Poel, A. (2018) Drug Consumption Rooms in the Netherlands.
- International Network of Drug Consumption Rooms (website)
- Peacey, J. ( 2014) Drug Consumption Rooms in Europe. Client experience survey in Amsterdam and Rotterdam.
- Rigoni, R., Breeksema, J., Woods, S. (2019) Limites da Correria. Redução e Danos para pessoas que usam estimulantes. Escola Livre de Redução de Danos, Recife. (Capítulo sobre salas de consumo na Holanda).
- Schäffer, D.; Stöver, H. (2014). Drug consumption rooms in Europe Models, best practice and challenges.
- International Harm Reduction Association (2020) The Global State of Harm Reduction 2020.