Avanços e retrocessos no apoio a RD
Em 2003, a Política Nacional de Drogas passou a apoiar a redução de danos (RD) oficialmente. Uma abordagem que já se fazia existir na prática no Brasil, vale dizer, desde 1996. A legislação de 2003 veio para garantir subsídios e suporte político nacional para ampliar e aprimorar as ações. Em 2019, a nova Política Nacional de Drogas dá uma virada na direção contrária, retirando o apoio à RD e transferindo o mesmo para as Comunidades Terapêuticas (CTs), voltadas à abstinência como única forma de abordagem ao uso de drogas e, em sua grande maioria, de cunho religioso. Do ponto de vista da regulação, portanto, temos um grande retrocesso, que ignora os avanços científicos na área e fere os direitos das pessoas que usam drogas.
Porém, por parte dos profissionais de saúde (e assistência social), existe muito mais apoio à redução de danos hoje do que existia em 2003, quando a Política Nacional de Drogas mudou. Tanto a política de 2003 quanto os decretos que vieram após a mesma e que asseguraram financiamento e suporte a redução de danos, asseguraram uma base para que a abordagem pudesse se desenvolver. Neste meio tempo, muitos profissionais se formaram e entraram no campo da abordagem a pessoa que usa drogas já com uma maior base científica e um maior conhecimento das políticas públicas. Neste período também, houve muito mais debates refletindo sobre o imaginário social acerca das pessoas que usam drogas. Existe, na minha opinião, um grande potencial aí.
Resistência dos trabalhadores da saúde frente à RD
Dito isso, existe sim uma legitimação por parte da sociedade e das categorias profissionais em relação à abstinência médico-centrada como único foco possível. E esta resistência não é nova. O próprio Ministro Osmar Terra, médico de formação e responsável pela nova legislação, vem defendendo suas idéias contrárias à RD a muito anos, é um refrão que se repete.
O que mudou para que esse novo contexto seja possível, e para que estas idéias passem a vigorar como lei, é que o governo atual oferece o espaço oficial para estas narrativas higienistas e moralistas, desconectadas dos avanços científicos e dos direitos humanos. Neste sentido, a meu ver, pessoas que já possuíam uma resistência anterior a políticas mais humanitárias vêem suas crenças refletidas na posição oficial, e passam a se sentir mais autorizadas a expressá-las. Também vemos aí outros intere$$es em jogo, tanto da bancada religiosa que lucra com as CTs, quanto das categorias médicas que lucram com as internações hospitalares e tratamentos forçados.
Por mais que se tenha avançado, existe ainda pouco conhecimento por parte dos profissionais dos avanços científicos na área sobre o uso e a dependência de substâncias. Hoje é possível dizer, internacionalmente, que a RD possui uma densidade irrefutável de evidências. Talvez muito pouco disso se ensine em cursos de graduação e certamente ainda muito pouco se faz em termos de educação continuada dos profissionais que já estão colocados. É claro, também, que em todo processo de formação existem questões de valores pessoais e crenças anteriores que precisam ser trabalhados, revisitados, e isso toma tempo. Aprendi sobre a tal “paciência histórica” com o redutor e amigo Dílson Strossi, que me apresentou a RD lá nos idos de 2003. Na época, começamos a trabalhar com Agentes Comunitárias de Saúde para que pudessem inserir a RD em suas práticas. O processo não foi fácil, havia muita resistência das profissionais, e a RD ainda era bastante desconhecida dentro do SUS. Paciência histórica é continuar seguindo rumo ao nosso ideal, sabendo que mudanças de paradigma tomam tempo, e que precisamos trabalhar com o possível no momento em que estamos.
Com a nova política sobre drogas, a RD vai acabar?
Precisamos ainda ver como a Nova Política Nacional vai influenciar as práticas dos profissionais. Existe na literatura uma conhecida distância entre a política oficial, dos documentos, e a política na prática, como é desenvolvida pelos profissionais da ponta. Neste sentido, pessoas que já trabalhavam com a RD muito provavelmente continuarão a trabalhar na mesma perspectiva. E os que já não o faziam, continuarão não o fazendo, mas agora com maior legitimidade, já que a Nova Política dá suporte a isso. A Nova Política certamente traz dificuldades, sobretudo se perda do apoio financeiro se concretizar. Agora, precisamos relembrar que a RD não nasceu a partir de um decreto, e certamente não irá terminar com um. A prova disso é que seguimos firme e fortes, não só no Brasil mas em várias partes do mundo, mesmo onde a redução de danos ainda nem chegou às políticas oficiais. A tendência mundial é, sem dúvida, o avanço no sentido de apoiar políticas sobre drogas mais humanitárias, e a RD é peça chave nesse processo.
Precisamos de espaços de reflexão
Neste momento de retrocessos nas conquistas das políticas sobre drogas, pessoas que trabalham com RD são (novamente) colocadas em uma posição de ter que constantemente defender o seu campo. Essa luta pela defesa dos direitos ameaçados toma tempo e energia que então já não podem mais ser investidos no avanço das práticas e teorias que apóiam a redução de danos. Neste contexto, é de suma importância manter espaços de encontros e reflexões para compartilhar conquistas e desafios, e seguir avançando em práticas, políticas e idéias relacionadas à RD. Esta construção conjunta necessita de representantes da comunidade científica, trabalhadores da ponta, gestores, redutores de danos, e representantes de associações de pessoas que usam drogas para debater em conjunto. É desse tipo de multiplicidade que precisamos para avançar em direção a políticas mais humanas e efetivas para as pessoas que usam drogas.