Tratados internacionais e a redução de danos

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Muitas vezes, os acordos internacionais em torno das drogas ilícitas são usados para justificar que uma determinada política ou atividade de redução de danos não pode ocorrer.

Quando os programas de redução de danos começaram a distribuir seringas para proteger as pessoas que injetam drogas contra doenças transmissíveis pelo sangue, por exemplo, isso foi interpretado como um incentivo ao uso de drogas. Lembro quando os redutores de danos no Brasil precisavam carregar um documento oficial, explicando seu trabalho, para mostrar às autoridades (geralmente a polícia) quando em campo. Muitos tiveram suas mochilas com seringas e outros materiais confiscadas ou destruídas. Outros tiveram que passar horas ou uma noite na delegacia, antes de convencer as autoridades de que se tratava de prevenção e saúde, e não de incentivar o uso de drogas. Isso ainda acontece em muitos países, e não apenas com seringas, mas também com cachimbos para o uso de crack ou metanfetamina ou com drogas que revertem overdose, como o Naloxone.

Estes entraves à redução de danos, porém, não acontecem em todos os países que ratificam os tratados internationais. Países signatários dos tratados têm regulamentações diferentes, e isso nos diz que há uma questão de interpretação e espaço para a liberdade de desenvolver uma política nacional diferenciada.

As três principais Convenções da ONU sobre drogas atualmente em vigor são:

Mas como estas convenções interpretam algumas abordagens de redução de danos? Vejamos.

Posse e compra para consumo pessoal: De acordo com os tratados da ONU, a posse para fins de tráfico deve ser criminalizada. A convenção de 1961 não obriga à criminalização de posse ou compra para uso pessoal. Desde a Convenção de 1988, no entanto, a criminalização da posse, compra e cultivo para consumo pessoal torna-se obrigatória. O que é bom ressaltar é que nenhuma convenção obriga a impor prisão por posse para uso pessoal. Os países podem aplicar sanções administrativas neste caso.

Posse de equipamentos para uso de drogas: Não há obrigação de confiscar equipamentos para uso de drogas. Usuários, portanto, não estão proibidos de obter seringas, cachimbos, ou outros equipamentos estéreis. O artigo 37 da Convenção de 1961 estabelece que “quaisquer drogas, substâncias e equipamentos usados ​​ou destinados ao cometimento de qualquer dos delitos mencionados no artigo 36 estarão sujeitos a apreensão e confisco”. O Artigo 36, entretanto, não menciona equipamentos para uso de drogas, mas para “cultivo, produção, fabricação, extração, preparação, posse, oferta, oferta para venda, distribuição, compra, venda, entrega em quaisquer termos, corretagem, despacho, expedição em trânsito, transporte, importação e exportação de drogas ”.

Troca e distribuição de seringas: Em teoria, elas violam as convenções, mas com base nos preâmbulos das convenções, os governos podem implementar programas para a saúde pública (evitar a disseminação de vírus, por exemplo). O artigo 38 da Convenção de 1961 estabelece que “As Partes darão especial atenção e tomarão todas as medidas possíveis para a prevenção do abuso de drogas…. O Artigo 3, parágrafo 1 (c) (iii) da Convenção de 1988 declara como uma ofensa criminal “Incitar ou induzir publicamente outros, por qualquer meio, a cometer qualquer dos delitos estabelecidos de acordo com este artigo ou usar entorpecentes ou substâncias psicotrópicas ilicitamente”. No entanto, os preâmbulos da convenção expressam preocupação geral com a saúde pública e o bem-estar da humanidade.

 

Tratamento: A importância do tratamento é reconhecida e a escolha de como implementá-lo é deixada aos Estados Membros. “Todas as medidas praticáveis” são possíveis. A Resolução II da Conferência das Nações Unidas para a adoção da Convenção Única de 1961 mostra, no entanto, um foco na internação e abstinência. Ela diz que “… um dos métodos mais eficazes de tratamento para dependência é o tratamento em uma instituição hospitalar com atmosfera livre de drogas”. Bem se vê que as convenções são antigas! Mesmo assim, elas não excluem outras medidas como as baseadas na redução de danos.

Prescrição de heroína e substituição com metadona: Ambas podem ser permitidas dentro da estrutura de permitir o uso de drogas para “fins médicos e científicos”. Mesmo que eles não possam ser proibidos de um ponto de vista legal, os governos ainda podem chegar a conclusões diferentes sobre quais “fins médicos e científicos são legítimos.

Salas de Consumo de Drogas: Não há orientação clara sobre elas. Por um lado, elas violam algumas disposições das Convenções relativas à posse de drogas, mas, por outro lado, a posse e o consumo não são necessariamente criminalizados. Muitos países da Europa e alguns das Américas têm salas de consumo de drogas. Aqui você pode encontrar um mapa com as salas de consumo pelo mundo, incluindo as salas móveis e os países onde elas ainda não foram implantadas mas já existe uma discussão.

Testagem de Drogas: Há uma situação duvidosa aqui. Por um lado, esta estratégia viola as Convenções por tolerar o uso de drogas ilícitas e porque o fornecimento de informações e conselhos sobre drogas pode ser considerado como incitamento público ou incentivo ao uso de drogas ilícitas (proibido na Convenção de 1988). Por outro lado, testar drogas pode ser considerado  algo para “fins médicos e científicos”, uma vez que se testa a composição exata das substâncias e então se pode monitorar o mercado. Depende, portanto, de como os governos estão dispostos a interpretar a estartégia.

Uso não medicinal e recreativo de maconha: Não é obrigatório criminalizar o uso recreativo da maconha, mas dada a limitação para fins científicos e médicos, não há espaço para legalizar o uso recreativo. Imagino que você esteja se perguntando: como os EUA legalizaram o uso recreativo da maconha? E o Uruguai? E no Canadá? Eles desrespeitaram os tratados! E isso foi possível. Cheque os links ou este documento informativo para descobrir como.

Finalmente, se as pessoas cometerem um delito, cada pais pode escolher como lidar com a implementação de sanções, níveis de punição e implementação de sanções. Nas Convenções da ONU, há espaço para medidas alternativas como tratamento, educação, reabilitação e reintegração social. Há muito espaço para elaborar e implementar essas medidas de acordo com as necessidades locais.

Por fim, podemos dizer que as Convenções tem um caráter claramente proibicionista, mas mesmo assim, tem sido possível encontrar brechas para legitimar as ações de redução de danos.

Quer saber mais? Confira nossa fonte: De Ruyver, B., Vermeulen, G., Vander Beken, T., Vander Laenen, F., & Geenens, K. (2002). Multidisciplinary drug policies and the UN drug treaties. Antwerpen/Apeldoorn: Maklu.

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