Holanda arrependida?

Esta semana recebi de amigos brasileiros uma matéria que vem circulando na mídia dizendo que a Holanda estaria arrependida dos seus passos “liberais” com relação às drogas, trabalhadores do sexo e homossexualidade. Basicamente, arrependida de ter regulado a venda da maconha nos coffesshops, de ter regulado a prostituição através das conhecidas vitrines, e de ter legalizado a união entre pessoas do mesmo sexo. Uma versão bastante similar desta mesma matéria já havia sido publicada em 2015, e matérias semelhantes devem estar percorrendo os canais da mídia desavisada e sem compromisso com seu público e seus contribuintes.  A conclusão lógica, segundo tais matérias, seria de que fica comprovado que tais abordagens não funcionam e, portanto, nunca deveriam ser consideradas em países como o Brasil ou qualquer outro. A repressão, sim, seria a melhor solução para os percebidos problemas.

Estereótipos…

As matérias em questão são muito interessantes! Interessantes porque se utilizam de alguns fatos, mas os distorcem, tirando do contexto em que aconteceram ou foram ditos. E com isso, criam uma perspectiva completamente diferente da que acontece na Holanda.

Comento aqui abaixo alguns dos argumentos utilizados pelas ditas matérias, comparando com a situação que se desenrola na Holanda.

Vamos por partes:

A Holanda não legalizou as drogas

Sempre é bom repetir isso porque as pessoas nunca lembram. Todas drogas seguem sendo ilegais na Holanda, e apenas as drogas consideradas leves – por ex. a maconha- tem uma venda regulada (com ênfase no REGULADA, posto que existem várias regras para a abertura e funcionamento dos coffeeshops que as vendem, assim como para as pessoas que a consomem). Além disso, assim como vários outros países, na Holanda a pessoa não é punida ou presa pelo simples uso da droga. A força policial prefere se concentrar no tráfico de grande porte ao invés de revistar pessoas na rua em busca de poucas gramas de alguma substância qualquer. Pra quem gosta de dados concretos, a posse para uso pessoal de até 5 gramas de drogas leves (como a maconha) ou 0.5 gramas de drogas pesadas (como crack ou heroína) é tolerada. E caso a pessoa que usa drogas cometa algum crime (como roubo, venda de drogas, ou perturbação da ordem pública), a atitude da polícia é encaminhar a pessoa para algum serviço de saúde ou assistência social. E lá também, ações de redução de danos tem prioridade: salas de consumo, albergues onde o uso de drogas é permitido, terapia de substituição com metadona ou prescrição de heroína são atividades apoiadas e financiadas pelo governo. Todas elas tem sido muito bem avaliadas.

A Holanda não está arrependida de ter regulado a prostituição ou a venda de maconha nos coffeeshops, mas sim, está revendo algumas das regulações.

E por motivos diversos do que aqueles destacados pela matéria do blog. Vamos a eles em mais detalhes:

>A motivação do fechamento de algumas vitrines na zona de prostituição regulada no centro de Amsterdam (De Walen) não é devida a um arrependimento, mas um interesse político e comercial. Houve sim a compra de várias das vitrines, e sim, há um projeto em andamento para remoção de parte das vitrines para outras áreas da cidade. Por um lado, há sim uma – contestada – idéia de “higienização” do centro da cidade. Por outro, há um forte interesse comercial na área: várias vitrines foram substituídas por butiques e outras lojas, em função do movimento e forte concentração de pessoas no centro, que seria traduzido em maior lucro do que o atualmente arrecadado com impostos e aluguel que as trabalhadoras do sexo pagam. Apesar das mudanças, não está em discussão tornar a prostituição ilegal.

Red Light, Amsterdam

Da mesma forma, definitivamente não está em discussão proibir a união homossexual, ou o reconhecimento de maternidade/paternidade de um filho pelo parceiro do mesmo sexo, ou adoção.

Com relação aos coffeeshops: varios cofeeshops fecharam sim, mas a Holanda não está insatisfeita com sua política de venda regulada da maconha.

Está sim endurecendo a regulação tentando atacar novos problemas e insatisfações públicas. Por exemplo: a Holanda e alguns países vizinhos estavam preocupados com a circulação da droga nas fronteiras através de usuários estrangeiros que vinham comprar droga nos coffeeshops. Havia também uma preocupação de alguns estabelecimentos ou moradores vizinhos aos coffeshops com problemas de barulho (não crime) causado por usuários em torno dos coffeshops. E ainda a preocupação que o comércio estava crescendo demais. Por isso, desde 1996 não é mais permitido abrir novos coffeeshops, e as regras de funcionamento, que sempre estiveram lá, foram endurecidas um pouco mais. A distância permitida de escolas foi diminuída para 250m e o nível máximo de THC a ser vendido é agora 15%. Em função das novas regras, coffeshops que não cumpriram com o estabelecido foram sendo fechados. Também, nas fronteiras, coffeeshops foram fechados. Em 1995 haviam 1500 coffeeshops na Holanda, em 1999 eram 846 e em 2013, eram 640. Para quem quiser mais informações sobre a política dos coffesshops, recomendo esta tese de doutorado, que inclui dados sobre os efeitos da regulação no consumo da maconha.

Bem importante dizer: os coffeshops não aumentaram o narcotráfico nas ruas, muito antes pelo contrário.

Um dos projetos piloto feitos no país – em algumas cidades- foi exigir o registro dos usuários nos coffeshops – só cidadãos holandeses poderiam comprar a droga, se estivessem formalmente registrados. O resultado foi: aumento do narcotráfico nas ruas, aumento do barulho e da criminalidade. Quer dizer: a venda regulada nos coffeshops previne o narcotráfico, pois as pessoas preferem comprar em um lugar seguro. Devido a esses resultados, a Holanda desistiu da idéia do registro.

Coffeeshop, centro de Amsterdam

Mais ainda, recentemente foi votado um projeto na câmara dos deputados para regularizar não só a venda, mas também a produção da maconha na Holanda.

Com isso, os proponentes pretendem acabar com o problema do fornecimento para os coffeeshops, e aumentar o controle sobre o tráfico de drogas. O projeto, aprovado na Câmara, agora precisa passar pelo Senado. Interessante também lembrar que vários países no mundo todo tem revisto suas legislações com relação a maconha para assumir posturas menos repressivas. Aqui um resumo da situação em 2015, em 47 países.

Engraçado: Dirk Korf, o criminologista citado pela matéria, foi meu orientador de doutorado. Na primeira vez em que me mostraram essas matérias circulando por aí, traduzi pra ele e pedi sua opinião. O que ele disse é que definitivamente a conclusão da matéria é o completo oposto do que ele afirma e do que as pesquisas que ele faz comprovam.

Quando ele disse a frase traduzida pelas matérias, ele teria sido perguntado sobre a possibilidade de legalização (um passo além da regulação de hoje) e teria dito então que isso deveria ser feito com cuidado, posto que a população está descontente com algumas medidas liberais. Na opinião dele, isso é uma questão política e que reflete a necessidade de se experimentarem novas regulações, em projetos piloto, com pesquisas sobre os efeitos. Dizer que a população está insatisfeita com as medidas liberais, não significa defender a abolição dessas medidas.

Realmente acredito que pra se ter um debate sério e informado a precisamos ir além de matérias sensacionalistas que circulam na mídia. Fatos e palavras devem ser usados de maneira contextualizada, e é sempre bom ir além de informações superficiais. Tem muitos estudos sendo feitos hoje em dia, e é bom que a gente possa se utilizar disso para formar debates e opiniões mais críticos e respeitosos dos fatos.

Opinião informada faz bem à saúde.

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