E nasce uma pesquisadora sobre drogas…

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Você já se perguntou por que escolheu o trabalho que faz? O que te tira da cama para trabalhar por mais de 8 horas por dia, num determinado assunto, talvez por muitos anos? Eu já.

Quando a gente trabalha no campo das políticas de drogas e redução de danos, a gente geralmente carrega um desejo de tornar o mundo um lugar melhor. Acima de tudo, um lugar melhor para pessoas que usam drogas e aquelas que estão próximas a elas. Isso não foi diferente no meu caso.

Quando terminei minha graduação em Psicologia em Porto Alegre, Brasil, em 2001, comecei a trabalhar para a Organização Não Governamental Movimento Metropolitano de Redução de Danos. Fazíamos educação permanente juntamente com profissionais de saúde, buscando com eles formas de abordar os usuários de drogas que eles encontravam diariamente. Naquela época conheci a “redução de danos” pela primeira vez: uma abordagem que não exige que as pessoas que usam drogas se tornem abstinentes ou parem de usar drogas para iniciar o cuidado de si. E esta proposta fez muito sentido pra mim.

A redução de danos veio como uma alternativa à abordagem de abstinência. Esta última, predominante nas práticas de cuidados em saúde naquela época, mas já criticada por ser excludente e manter longe dos serviços todas aquelas pessoas que não queriam ou não podiam parar de usar drogas. No ano de 2003, a política nacional sobre drogas mudou para apoiar oficialmente a redução de danos pela primeira vez. Isso levou o governo brasileiro a investir na capacitação de profissionais de saúde para lidar com a nova abordagem. E lá estava eu.

Nas reuniões e atividades com os trabalhadores, eu podia sentir a dificuldade que muitos tinham em aceitar e/ou colocar em prática a redução de danos. Eram frequentes os desentendimentos sobre o que fazer, os mal-entendidos, e o comportamento prejudicial para com os usuários e a abordagem de redução de danos. Quando estas questões eram superadas, outras restrições estruturais surgiam, como a falta de recursos financeiros, serviços, e apoio político. Isso tudo dificultava muito a adoção da redução de danos como objetivo.

Alguns anos mais tarde, quando trabalhei como psicóloga em um Capsad, experienciei ter colegas que se negavam a adotar redução de danos, embora a proposta fosse parte das regras e regulamentos que orientavam nosso trabalho. Enquanto eu promovia estratégias para reduzir os danos nos grupos e nas consultas individuais com pessoas que usam drogas, alguns de meus colegas reforçavam a necessidade de abstinência completa em suas atividades. Muitas vezes, estávamos atendendo as mesmas pessoas. Com cada profissional comunicando aos usuários um objetivo diferente, todos nós experimentávamos dificuldades em desenvolver coerência em nosso trabalho.

Movida por estas questões, elaborei um projeto de pesquisa de mestrado para investigar o trabalho dos redutores de danos abordando pessoas que usam drogas em Porto Alegre e região metropolitana. A Capes me ofereceu uma bolsa por 2 anos. A pesquisa mestrado confirmou que os redutores de danos encontravam dificuldades em colaborar com trabalhadores em assistência social e saúde cujas práticas se orientavam à abstinência como única via. Os redutores também percebiam as atividades repressivas dos policiais como dificultando seu trabalho – notadamente pelo deslocamento constante dos usuários, e pela apreensão de equipamentos para o uso de drogas – como seringas que eram distribuídas pelos programas de redução de danos para evitar o contagio e transmissão do HIV. Uma coisa ficou clara nesta pesquisa: mesmo que a política oficial fosse certamente um importante dispositivo para organizar as atividades dos profissionais da área, sozinha, a política no papel não se mostrava suficiente para que os trabalhadores modificassem suas práticas para apoiar a redução de danos. O que faltava então?

Todas essas questões se juntaram na construção de uma proposta de pesquisa de doutorado. Como é que trabalhadores escolhem dentre as diferentes abordagens sobre como lidar com o uso de drogas? Como eles decidem se e com quem querem colaborar? E como a política nacional oficial pode, às vezes, ser totalmente ignorada na prática?

Por sorte, consegui uma vaga e uma bolsa de estudos do governo holandês – NUFFIC – para estudar essas questões na Holanda, país em que a abordagem de redução de danos nasceu. Nesta época, em 2008, a estratégia holandesa de redução de danos era vista como um exemplo a ser seguido por todos que apoiavam a redução de danos, o pote de ouro no final do arco-íris, onde todos queriam chegar. Quando comparada à política nacional holandesa, a brasileira parecia estar muito atrasada. Quais lições nós brasileiros poderíamos aprender dos holandeses? E como, exatamente, esta política de ouro da redução de danos funcionava na prática na Holanda?

Eu esperava ver grandes diferenças em termos de como os trabalhadores se comportavam, pensavam e decidiam sobre o que fazer com as pessoas que usam drogas em seu trabalho cotidiano.

Ao longo da pesquisa, no entanto, as cores do arco-íris holandês mostraram algumas nuances diferentes, e o pote dourado se mostrou menos brilhoso do que o esperado, ainda que muito valioso. Muitas outras questões foram despertadas, e comparar idéias e experiências de trabalhadores em saúde, assistência e segurança nos dois lados do oceano Atlântico foi definitivamente uma das tarefas mais interessantes e desafiadoras que tive na minha carreira acadêmica. Através das experiências dos trabalhadores que participaram desta pesquisa, revisitei a dureza e a sensibilidade da negociação diária de objetivos, significados e decisões.

No final de 2015, comecei um trabalho de consultoria que me permitiu explorar ainda mais a variedade de atores e experiências relacionadas a políticas sobre drogas. Trabalhando para a Fundação Mainline, tive a chance de conhecer dos altos funcionários da UNODC e órgãos governamentais às pessoas que usam uma variedade de drogas e habitam becos estreitos e favelas em países como a Indonésia e a África do Sul. O compartilhamento de experiências e a tentativa de compreender o desenvolvimento das políticas em diversos contextos ampliou meu entendimento da elaboração de políticas nacionais e internacionais sobre drogas.

Agora, em 2017, estou adentrando mais profundamente o contexto histórico dos diferentes discursos e políticas sobre drogas. Através de uma pesquisa de pós-doutorado na Universidade de Utrecht, vou analisar como países da União Européia tem interpretando as posições holandesas em torno de drogas. Teriam eles influenciado a direção tomada pela Holanda?

Minha trajetória como pesquisadora sobre drogas se desenvolveu a partir da base.

Comecei como redutora de danos, passei a estudar como as pessoas que usa(va)m drogas aconselhavam outras a reduzir seus danos, subi um nível na escada das formulações em políticas para investigar como trabalhadores sociais, em saúde e em segurança abordavam pessoas que usam drogas, e hoje investigo a formulação da políticas sobre drogas nos níveis políticos mais altos. Literalmente das ruas para o papel e as salas de reuniões.

Percebi que, embora permaneça no mesmo campo, tenho visto o mesmo a partir de perspectivas diversas. Cada disciplina – história, psicologia, políticas públicas, estudos em desenvolvimento – tem contribuições únicas para a compreensão do uso e do tráfico de drogas. A novidade de descobrir, todos os dias, um pouco mais sobre cada lado deste tópico é o que me leva a sentar em frente do computador, dos livros e das pessoas envolvidas com (o estudo d)as drogas. A cada passo, adquiro uma compreensão mais holística sobre drogas.

E você, como você começou sua jornada em direção ao trabalho que você faz e o que faz você continuar?

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